quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

PROJETO SABORES DA TRADIÇÃO: Comida Como Patrimônio e Atrativo Turístico – Entrevista com Dra. Maria José Araújo (Portugal).


Caríssimos amigos leitores, hoje é dia de Sabor da Tradição, e discutiremos sobre a comida como patrimônio e atrativo turístico.
Desde que a Unesco começou seus trabalhos pela preservação do patrimônio mundial e, principalmente quanto passou a introduzir a Convenção Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, em 2003, a cultura gastronômica tornou-se um novo paradigma na efervescência patrimonial. Desde então o patrimônio gastronômico, ou patrimônio alimentar, que configura como parte do patrimônio intangível, vem sendo considerado “ativo global” e “recurso local” e torna-se catalizadora de projetos que geram desenvolvimento sobretudo impulsionando a atividade turística, integrando comida e cultura, explorando as cozinhas patrimoniais para criar novas possibilidades de atrativos e competitividade para destinos turísticos.
Considerando o destaque que a gastronomia vem tendo no turismo, sobretudo para o segmento cultural, onde se percebe a necessidade emergencial de aprofundar conhecimento sobre o patrimônio gastronômico a entrevista de hoje abordará estes temas e tem como convidada uma pesquisadora do outro lado do Atlântico, uma amiga com interesses pela gastronomia e patrimônio, e que a partir de agora vocês terão a oportunidade de conhecer uma pouco: Dra. Maria José Araújo, a quem, desde já agradeço a atenção e disponibilidade. Mas vamos à entrevista:

Dra. Maria José Araújo

Barão de Gourmandise (BG) - Para aqueles que não lhe conhecem, poderia apresentar-se e dizer quem é você e a que se dedica?

Dra. Maria José Araújo (M.J.A): Olá! O meu nome é Maria José Araújo, tenho 59 anos e um percurso de vida rico e diversificado. Licenciei-me em Engenharia Eletrotécnica e de Telecomunicações e trabalhei, com muito gosto, nessa área durante 25 anos. Decidi então mudar de rumo e licenciei-me em Gestão Hoteleira. O gosto por voltar aos estudos e a convivência com pessoas mais novas, levou-me ao Mestrado em Gestão de Turismo. Defendi a tese sob o título” Valor patrimonial da gastronomia portuguesa: impacto na satisfação dos turistas no destino Porto”, com a classificação de 19 valores. O interesse pela gastronomia como atração turística levou a um maior interesse pela história da alimentação e fiz a Pós-Graduação em História da Alimentação: Fontes, Culturas e Sociedades. Continuar com o doutoramento em Patrimónios Alimentares: Culturas e Identidades foi o passo seguinte.
Do ponto de vista profissional, fui assistente convidada em várias universidades e institutos superiores, na área do Turismo e da Gestão Hoteleira, funções que desempenho atualmente no ISLA – Instituto Politécnico de Gestão e Tecnologia (Porto, Portugal). Sou investigadora no projeto LMPH no âmbito do programa TEMPUS, para a criação de licenciaturas e mestrados na área da Gestão Hoteleira para a Geórgia, Moldávia e Azerbaijão. Sou colaboradora do projeto DIAITA – Patrimônio Alimentar da Lusofonia. Literatura, Cinema e Música são as minhas artes de eleição. Para além da Gastronomia, claro! Família e Amigos são as minhas âncoras.

B.G. - Massimo Montanari em ‘Do Paladar Gastronômico ao Bom Gosto Intelectual’ (texto publicado na revista Contextos da Alimentação–Revista de Comportamento, Cultura e Sociedade, v. 1, n. 1, 2013), afirma que: “o ato de comer é aquele que produz o contato e que coloca em ação o gosto, fazendo-lhe reconhecer o sabor e, por trás disso, a essência da coisa. O sabor revela a essência e torna-se, portanto, um meio de conhecimento. O jogo de palavras sabor/saber, muito em moda hoje, usado também excessivamente em nível jornalístico e publicitário, na realidade, é muito mais que um jogo de palavras”. Levando em conta o contexto da sentença anterior, como você explicaria o ‘boom’ do interesse acadêmico pela gastronomia nos últimos anos?

M.J.A.: Desde sempre a gastronomia esteve presente na história do homem, sendo inúmeras as fontes que o comprovam. Atualmente, a gastronomia é um fenômeno de moda e também por esse motivo, constitui um poderoso atrativo turístico. A gastronomia faz parte integrante da atividade turística e contribui para a satisfação dos turistas e para o reforço dos destinos e desenvolvimento local. É pois cada vez mais necessário e importante compreender com maior profundidade o que está por detrás deste fenômeno, quais as raízes do que é oferecido, em que medida está presente a autenticidade nesta oferta, de que forma deve ser planeada e estudada, na perspectiva do desenvolvimento de um turismo sustentável. A academia não pode ficar indiferente a este fenômeno, tendo um papel fundamental no estudo científico da alimentação e da gastronomia, quer nos domínios da área do turismo quer na dos estudos da alimentação.

B.G. - Reconhecendo a gastronomia como elemento cultural e a importância da experiência gastronômica para valorização da cultura e identidade de um povo, observa-se que e a atividade turística utiliza a gastronomia como diferencial no destino turístico. Geralmente no turismo, como sugerido por Fox (FOX, R. “Reinventing the gastronomic identity of Croatian tourist destinations”. International Journal of Hospitality Management, 26 [2007] 546-559): “nesse processo de valorização da identidade gastronômica tende-se a incorporar preocupações de diferenciação, estetização, autenticidade, simbolismo” e rejuvenescimento/inovação da gastronomia, pois só assim está assegurado o respeito pelo patrimônio intangível de uma região turística”. Nesse sentido, como você vê a relação entre patrimônio, gastronomia e turismo?

M.J.A.: É sabido que o Novo Turista é mais informado e exigente, procurando a autenticidade dos locais e das gentes que visita. A gastronomia local, como fator identitário, insere-se no património intangível. Sendo um fator de diferenciação e de autenticidade, e sendo inseparável da experiência turística, a gastronomia torna-se um recurso turístico que, em certos casos, como o português, deve transformar-se de recurso em atração.

B.G. - Qual o panorama atual do patrimônio gastronômico em Portugal e qual importância dele para o fortalecimento dos destinos turísticos portugueses?

M.J.A.:  Portugal é um país pequeno, mas com uma paisagem rica e diversificada. Sendo certo que “a nossa cozinha é a paisagem posta na panela”, o património gastronómico português é igualmente rico e diversificado, pleno de cozinhas regionais que, nas palavras de José Quitério “enformam a cozinha nacional”. Não sendo Portugal ainda um destino cujo primeiro fator de motivação turística é a gastronomia, os estudos têm demonstrado que esta contribui para a satisfação dos turistas e determinam a sua intenção de revisita e de recomendação.

B.G - Poderia citar alguns gastrodestinos portugueses onde o patrimônio gastronômico é usado como atrativo turístico de forma bem-sucedida?

M.J.A.: As feiras regionais portuguesas não dispensam a componente gastronômica e giram muitas vezes à volta desta. Estas feiras ocorrem sobretudo fora dos centros urbanos e contribuem para o desenvolvimento turístico das regiões onde ocorrem, nomeadamente regiões menos desenvolvidas. É o caso da feira dos enchidos de Vinhais (tendo esta região produtos certificados DOP e IGP). Com uma costa marítima muito extensa, o peixe e o marisco são presença obrigatória na alimentação portuguesa e referência gastronômica. Lisboa, a capital, que tem registado um aumento crescente de turistas, promove anualmente o evento “Peixe em Lisboa”. Mais a norte e ainda no peixe, considerado o melhor peixe do mundo por alguns Chefs internacionais, o festival “Mar na Brasa” atrai o turismo interno e enorme potencial para os cruzeiristas que atracam no porto de Leixões.  Portugal é o país do Vinho do Porto, mas a indústria do vinho vai além do da mais antiga região demarcada do mundo. Assim o mostra o festival “Essência do Vinho” realizado anualmente no Porto que, em 2016, registou 20.000 visitantes em quatro dias.

B.G. - Considerando que durante as viagens de turismo e lazer os viajantes podem descobrir o lugar pela história e cultura, eles ainda acabam deparando-se com preparações culinárias e ingredientes diferentes e até exóticos – fato bastante registrado ao longo da literatura de viagem desde os mais remotos tempos. Poderia nos dizer o que de mais diferente teria a culinária portuguesa para apresentar ao mundo, na sua visão, e qual a sua experiência mais marcante com comida ou bebida durante viagens?

M.J.A.:  Portugal tem atualmente 26 estrelas michelin, sendo estas o reconhecimento da qualidade dos Chefs em restaurantes portugueses, mas sobretudo um tributo à gastronomia portuguesa. Como já referido, trata-se de uma gastronomia rica e diversificada, com influências mediterrânicas, mas também atlânticas, em que se podem salientar a ligação ao mar – peixe e mariscos – os enchidos, sempre presentes nas zonas rurais e a doçaria, com fortes tradições conventuais. Mas se tivesse que eleger um só produto representativo da gastronomia portuguesa, seria o bacalhau. A Cura Tradicional Portuguesa do bacalhau é uma Especialidade Tradicional Garantida e os portugueses têm 365 maneiras de o preparar. Um para cada dia do ano. Tudo dito! Nas minhas viagens, procuro encontrar o autêntico e tradicional da gastronomia dos destinos. Conhecendo sobretudo os países europeus, não posso deixar de referir a proximidade da base da cozinha mediterrânica em que sempre encontro pontos comuns, seja em Espanha ou Itália, mas também em países como a Moldávia ou a Geórgia.

B.G. – A relação de Portugal com o Brasil vem sendo contada ao mundo desde a época das grandes navegações – período marcado por viagens de conquista, reconhecimento de territórios e comércio de especiaria e produtos exóticos. Para muitos autores brasileiros, a cozinha brasileira é uma mistura oriunda das culturas indígenas, africanas e europeias. Seguramente, a colonização permitiu essa interação e nos influencia até hoje. Agora, fazendo a linha inversa, como você vê está relação e, em sua opinião, haveria algum resquício ligado à gastronomia (hábitos, ingredientes, técnicas, utensílios) que Portugal teria adquirido a partir do Brasil e que possa ser encontrado atualmente?

M.J.A.: Não sei responder a esta questão, mas com a relação histórica e cultural entre Portugal e o Brasil, certamente que a influência terá que ser recíproca, mesmo que não na mesma proporção.

B.G. - Uma bela paisagem contribui muito para tornar memorável uma viagem. Os sabores do terroir apresentam as melhores produções melhor do local. Considerando as sentenças anteriores, e sabendo da existência de produtos com indicações geográficas e denominações de origem protegidas, qual seria o destino turístico português mais adequado para um turista gastronômico visitar se ele buscasse paisagem, terroir e produtos com indicações geográficas?

M.J.A.:   A região do Porto e Norte de Portugal e a região do Alentejo, sem dúvida. Ambas as regiões têm inúmeros produtos certificados com DOP e IGP.

B.G. – Há um dito muito popular no Brasil que prega o seguinte: “Ir a Roma e não ver o Papa”. A expressão popular significa: ir a algum lugar e não ver o mais importante; o mais interessante dele. Assim, levando para o lado gastronômico, o que um turista não poderia deixar de experimentar em Portugal? E qual seria o(s) elemento(s) gastronômico(s) que, a seu ver, representaria (m) o patrimônio gastronômico português?

M.J.A.: Não poderia deixar de experimentar o Bacalhau, o Caldo Verde e os Pastéis de Nata, sendo o bacalhau o ícone da gastronomia portuguesa.

B.G - Considerando que a mesa é um lugar onde se deve partilhar as delicias gastronômicas com as pessoas que se gosta, quem e por que você convidaria para um encontro gastronômico onde juntos degustariam o sabor da sua tradição? E qual seria o destino para a realização deste evento?

M.J.A.: Nesta entrevista, a resposta não pode deixar de ser: Um amigo brasileiro que partilha o mesmo gosto e afetos pela gastronomia e que ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente: Reubens Frost . E, naturalmente, encontrar-nos-emos à volta da minha mesa.

Aperitivo:  M.J.A.:  Tomo um texto de um dos maiores escritores portugueses, António Lobo Antunes: “Morrer é quando há um espaço a mais na mesa afastando as cadeiras para disfarçar, percebe-se o desconforto da ausência porque o quadro mais à esquerda e o aparador mais longe, sobretudo o quadro mais à esquerda e o buraco do primeiro prego, em que a moldura não se fixou, à vista, fala-se de maneira diferente esperando uma voz que não chega, come-se de maneira diferente, deixando uma porção na travessa de que ninguém se serve, os cotovelos vizinhos deixam de impedir os nossos e faz-nos falta que impeçam os nossos”

MEU SABOR DA TRADIÇAO:

M.J.A.:  O meu sabor de tradição é o Doce de Abóbora. Não porque se trate de algo muito sofisticado, mas porque remete para as minhas memórias de infância, com a imagem imponente da minha Avó fazendo o doce à lareira, num tacho de cobre, mexendo vagarosamente, filosofando sobre as coisas simples da Vida. Este doce, mais do que para consumo ( que os mais pequenos não dispensavam) era feito para dar. Um frasquinho para a prima tal, outro para outra prima, uma vizinha, uma amiga, outra amiga…. Minha Mãe continuou esta tradição e lembro-me da nossa cozinha, já sem lareira, cheia de frascos: um para este, outro para aquele, outro para aqueloutro.
Hoje, faço este doce todos os anos, com o mesmo sentido. Um frasco para cada um dos meus irmãos, outro para cada um dos meus amigos e mais uns quantos para os vizinhos. É um sabor de tradição ligado à generosidade que Mia Couto tão bem descreve : ”Cozinhar não é um serviço; cozinhar é um modo de amar os outros”. Aqui fica uma foto do meu Sabor de Tradição, que é afinal de tantos e cuja receita é bem simples:



DOCE DE ABÓBORA

Ingredientes
Abóbora, açúcar e pau de canela

Preparação: Descasque e limpe a abóbora. Pese e coloque na panela onde vai fazer o doce. Pese metade do açúcar, despeje por cima da abóbora de deixe repousar durante umas horas, ou até de um dia para o outro. Junte 2 ou 3 paus de canela e leve ao lume. Vá mexendo até a abóbora estar cozida e desfeita. Aconselho a não usar a varinha mágica para o doce ficar com uma textura característica. Coloque em frascos bem limpos e feche bem. Consuma e ofereça.

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